Por que a cana é estratégica para a produção de hidrogênio verde

Por Delcy Mac Cruz

Com pegada zero de carbono, o gás renovável tende a deixar para trás os concorrentes gerados a partir de fontes fósseis

Créditos de imagem: BP Bunge/Divulgação

Hidrogênio verde ou renovável. Desde que ganhou os holofotes, a transição energética, ou substituição de combustíveis fósseis por limpos, fez do chamado gás do futuro a bola da vez. Afinal, ele é tido como capaz de garantir a descarbonização mundial.

Basta clicar em Hidrogênio verde na busca do Google. Ao se fazer essa pesquisa, na tarde do dia 07 de julho, foram confirmados 4,1 milhões de resultados. É muito para um termo que, enfim, carece de maior clareza para entrar no dia a dia.

Em primeiro lugar, é preciso destacar que, sim, o hidrogênio é estratégico como fonte de energia para veículos, indústrias e até mesmo para usinas termelétricas. E tem despertado cada vez mais interesse mundo afora, em especial na Europa, que entrará já já no inverno e precisará ainda mais importar gás da Rússia.

No mais, o hidrogênio convencional (H2) é gás incolor inflamável e o elemento mais leve e mais abundante no universo. Para sua obtenção, um dos métodos mais empregados é o da eletrólise da água.

Em resumo, neste processo a água é decomposta, ou seja, o hidrogênio e o oxigênio que compõem as moléculas da água são separados por meio de eletricidade.

Uma vez isolado, o hidrogênio pode ser utilizado como armazém ou gerador de energia por meio de células de combustível e abastecer automóveis e caminhões. Ou, então, servir como insumo para produção química, siderúrgica, petroquímica e de bebidas, entre outras.

Aí entra um detalhe precioso: qual é a procedência para retirada da eletricidade?

Se ela for feita com a energia termelétrica produzida pela queima de óleo combustível ou diesel, contribui para o avanço da temperatura média global.

Mas neste caso é como dar tiro no pé, porque reduzir essa temperatura é justamente o que a maioria dos países quer.

É certo que esse hidrogênio, chamado azul, captura carbono gerado no processo para neutralizar as emissões. E tem o hidrogênio cinza, produzido a partir, por exemplo, do gás natural em refinarias.

Seja um seja outro, ambos geram emissões.

E tem, enfim, o hidrogênio verde, ou H2V (H2 de hidrogênio e V de verde).

No mar e no canavial

De forma resumida, o H2V requer grande quantidade de energia para ser produzido na forma de combustível. E ele leva o nome de verde caso seu processo de produção descarte fontes energéticas danosas ao meio ambiente.

Melhor dizendo: ele é carbono zero, obtido sem emissão de dióxido de carbono (CO2).

As possibilidades para gerar o gás renovável são várias. Uma delas é usar a energia gerada a partir de offshores (estruturas petrolíferas instaladas no mar), produzir hidrogênio combustível e transportá-lo por dutos ou por vias marítimas.

Outras fontes limpas e renováveis para produzir H2 verde são a hidrelétrica, eólica, solar e as provenientes de biomassa, da qual a cana-de-açúcar é a principal integrante.

Independente da fonte, vale destacar que a produção do gás verde atualmente custa mais do que a do feito a partir de combustíveis fósseis.

Enquanto um quilo de hidrogênio feito de fósseis custa US$ 1,4, o do gás feito a partir da eletrólise varia entre US$ 5 e US$ 7 por quilo, relata a Agência Brasil a partir de estudo da Associação Brasileira de Hidrogênio.

Além disso, no mesmo relato a entidade atesta que o emprego de biomassa como fonte tende a custo competitivo.

“Estima-se que esse custo seja menor do que o produzido a partir de fósseis”, detalha à Agência o presidente da Associação, Paulo Emílio Valadão.

Ponto para a cana-de-açúcar, certo?

Sim.

É preciso lembrar que ao mesmo tempo em que  o H2V entra no radar das usinas de cana, ele está em vias de ganhar a unidade-piloto da EDP Energia no Ceará. Com investimento de R$ 41,9 milhões, ela utilizará energia fotovoltaica (solar) e capacidade para gerar 22,5 quilos por hora, relata a Agência Fapesp.

Estratégias das usinas de cana

Ademais, enquanto o país formata maturidade tecnológica para o H2V, as usinas de cana têm outras estratégias para gerar o gás renovável.

Uma delas já está inclusive em fase de produção. Trata-se da produção de hidrogênio cinza, aquele de origem fóssil, mas que empregará como fonte o biometano de cana. Desta forma, o cinza se torna verde.

Antes de seguir adiante, vale explicar que o biometano é uma mistura de gases resultante do processo de degradação da matéria orgânica, tem alto poder combustível e é resultante da concentração do biogás. Para se ter ideia, ele é semelhante ao Gás Natural Veicular (GNV).

Tanto o biometano quanto o biogás são gerados a partir de resíduos canavieiros, caso da vinhaça e da torta de filtro.

Pois a produção de biometano para substituir o hidrogênio cinza está em curso na usina da Raízen em Piracicaba (SP).

A partir de 2023, a planta pretende entregar 20 mil metros cúbicos diários de biometano para a Yara Fertilizantes. Essa empregará o gás renovável para produzir amônia verde, que hoje é processada por meio de fontes poluentes.

Segundo estudo da Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), divulgado na revista Globo Rural, o Brasil tem potencial para produção de 20 mil toneladas por dia de hidrogênio verde a partir de biometano, ou sete milhões de toneladas por ano.

No entanto, a própria ABiogás aponta que menos de 4% do potencial brasileiro é aproveitado, e o segmento sucroenergético tem papel relevante nesse potencial.

O que falta, por enquanto, é a expansão das tecnologias e da própria infraestrutura para que a fabricação seja expandida e a comercialização aconteça.

Conversão do etanol em H2V

Não para por aí. Pesquisadores do centro RCGI, financiado pela Fapesp e pela Shell, desenvolvem o projeto ‘Uso eficiente de etanol para produção de hidrogênio e eletricidade.”

“O hidrogênio é o combustível do futuro, mas o etanol não fica atrás nessa corrida. Juntos, eles podem dar ao Brasil um papel de protagonismo na luta por um combustível verde”, diz o engenheiro químico Hamilton Varela, coordenador do projeto e também diretor do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (IQSC-USP).

No decorrer do projeto, os pesquisadores pretendem desenvolver uma célula de membrana polimérica que, por meio da reforma eletroquímica, possa converter etanol e água em hidrogênio para abastecer células a combustível.

“A ideia é que no futuro as residências possuam células a combustível estacionárias, aos moldes do que acontecia no passado com os geradores a óleo diesel”, prevê Varela. “Essas células a combustível vão alimentar os veículos, bem como fornecer eletricidade para a casa. Tudo com hidrogênio”.

Vinhaça para fazer gás verde

Tem mais.

Pesquisadores também integrantes do RCGI trabalham em outra frente para chegar ao hidrogênio verde, mas a partir da vinhaça, que é um subproduto canavieiro.

À frente do Laboratório de Células a Combustível, situado na Poli-USP, o professor Thiago Lopes pretende desenvolver ali um reator eletrolítico voltado para a realidade da indústria sucroalcooleira nacional.

“A vinhaça tem 95% de água em sua composição. A ideia é que por meio desse reator possamos quebrar as moléculas de água para gerar oxigênio e hidrogênio verde”, diz ele para a revista Analytica.

Com ampla aplicação, o hidrogênio verde pode ser utilizado, por exemplo, na produção da amônia que entra na composição de fertilizantes.

“Hoje a amônia é sintetizada com hidrogênio proveniente de gás natural, o que gera uma pegada de CO2”, conta o pesquisador.

Já o oxigênio puro pode ser utilizado para a combustão do bagaço da cana-de-açúcar. “Ao condensar a água, pode-se obter de forma fácil e econômica um CO2 puro para estocagem ou então para ser convertido em produtos”.

Como se vê, a biomassa da cana e os subprodutos canavieiros, bem como o etanol, geram fontes para se chegar ao hidrogênio verde.

E, ao contrário dos concorrentes cinza e azul, o hidrogênio verde de cana oferece zero carbono e, também, custos menores de produção.

Por fim, vem aí uma nova fronteira produtiva para o setor sucroenergético.