Como o setor sucroenergético pode superar (no curto prazo) o desabastecimento de fertilizantes

Por Delcy MAC Cruz

Entre eles está o cloreto de potássio, empregado para enriquecer a cana-de-açúcar e que, em sua maioria, é importado da Rússia 

As consequências negativas da guerra na Europa são contabilizadas conforme avança a situação.  

No caso do agronegócio brasileiro, já se sabe que o impacto virá com a escassez de abastecimento de fertilizantes. Isso porque o país importa 85% dos fertilizantes químicos que usa e 23% deles vêm da Rússia, segundo entidades do setor.  

Não é possível saber com exatidão o quanto o agro brasileiro será prejudicado, seja pela falta do insumo ou pelos preços já turbinados, que certamente irão encarecer os custos de produção.  

Grãos como soja e milho estão entre as principais vítimas já na segunda safra do ano, chamada de safrinha, e cujo plantio e uso de fertilizantes começa neste primeiro semestre.  

Mas a cana-de-açúcar também é muito afetada.  

Motivo: ela recebe cloreto de potássio (KCI) na fase de fertilização. Esse insumo faz a matéria-prima do etanol ter alto teor de sacarose, que é o açúcar propriamente dito. Funciona assim: quanto mais sacarose, medida pela sigla ATR, maior é a produção de etanol ou açúcar.  

No ciclo produtivo (safra) em fase final na região Centro-Sul, as usinas chegaram a 75 milhões de toneladas de ATR, relata a UNICA, entidade representativa do setor.  

O montante é 14% inferior ao da safra anterior e reflete, por exemplo, a menor disponibilidade de cana no ciclo atual. Em resumo: se há menos sacarose, as usinas terão, consequentemente, menos açúcar ou etanol por tonelada.  

Os impactos da guerra

A guerra na Europa, desencadeada na última semana de fevereiro com os ataques da Rússia à Ucrânia, já reflete no mercado de fertilizantes químicos.  

Como os fatos são marcados pela volatilidade, é muito possível que este conteúdo cite exemplos que sejam ultrapassados enquanto você lê.  

Mas, em resumo, até 18 de março a crise dos fertilizantes era exemplificada por contratos de compra não atendidos, por preços turbinados e mesmo produtoras no Brasil, e que dependam de insumos russos, já avisaram que irão ofertar menos e com valores bem acima dos de 2021.  

“Não vai ter potássio para todo mundo”, afirmou  em 17 de março, à Folha de S. Paulo, Cristiano Veloso, que comanda uma fábrica de fertilizantes em Minas Gerais.  

Em sua avaliação, as sanções impostas à Rússia fizeram com que por retaliação o governo de Vladimir Putin orientasse os fabricantes de fertilizantes a suspenderem as exportações.  

Tem mais: aliado às dificuldades logísticas para desembaraço aduaneiro de fertilizantes e aos problemas já existentes no setor, tem-se um cenário crítico para as exportações em 2022.  

Como enfrentar este cenário que, na verdade, já bate às portas do agro brasileiro?  

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que é uma tradição as empresas importarem fertilizantes e insumos da Rússia e mesmo do Canadá, outro grande produtor.  

Agora é preciso mudar – e rápido – essa tradição.  

Diante disso, o governo federal lançou no começo de março o Plano Nacional de Fertilizantes (PNF), que prevê novas fábricas e expansão de produção 100% privados. Se saírem do papel, elas contarão com incentivos fiscais e tributários.  

Outra medida defendida pelo governo é a aprovação, pelo Congresso, de projeto de lei que permite a exploração mineral e outras atividades econômicas em terras indígenas.  

Neste caso, as mineradoras brasileiras e estrangeiras que operam no país se posicionaram contra o projeto de lei.  

Elas sustentam que o tema precisa de um debate mais amplo, segundo relato da entidade representativa, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram).  

Em seu perfil no Linkedin, Marcelo Morandi, chefe-geral da Embrapa Meio Ambiente, ressalta: “temos demanda e espaço crescentes para fertilizantes organominerais, orgânicos, agrominerais e os bioprodutos, estes últimos com ação fertilizante (biofertilizantes) e também de estímulo ao crescimento vegetal e/ou aumento na tolerância a estresses bióticos e abióticos (inoculantes).” 

E atesta: “o estímulo a esses segmentos é estratégico tanto sob o ponto de vista de atendimento à demanda interna por nutrientes e diminuição da dependência por insumos importados, como sob o ponto de vista ambiental, atendendo a novas exigências de mercado ligadas à economia circular e às mudanças climáticas.” 

No médio e longo prazo, parece que o Brasil encontra seu rumo em oferta garantida de fertilizantes. Mas e no curto prazo? 

Fiquemos no caso da cana. Ela própria fornece uma solução fertilizante que pode deixar de lado o convencional cloreto de potássio (KCI).  

Trata-se da vinhaça, líquido residual que é produto de calda na destilação do álcool e também é conhecido por restilo e vinhoto.  

“Temos uma ‘carta na manga’ que é a vinhaça”, destaca no Linkedin René Sordi, consultor técnico da EneRcana, ex-Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) e Grupo São Martinho. 

“A vinhaça com aplicação localizada com pingentes tem se mostrado cada vez mais uma opção para aumento do raio médio e da área aplicada, e, consequentemente, colabora para reduzir a dependência do KCl importado.” 

Também no Linkedin, o consultor especializado em energia Ricardo Hernandez Pereira lembra que “o efluente da biodigestão da vinhaça para biogás também contém o mesmo potássio”.  

Em tempo: o biogás é feito a partir de vinhaça e torta de filtro e se transforma em energia elétrica ou, na forma de biometano, em gás similar ao gás natural.  

Vale destacar aí que a vinhaça está aí, pronta para uso. E, assim, seu emprego como substituto do KCI exige certo investimento, mas a solução pode enriquecer no curtíssimo prazo os canaviais.  

A vinhaça localizada “é uma grande demonstração das pesquisas realizadas sobre utilização da vinhaça na fertilização dos canaviais”, relata, em comentárioGlauber J.C. Gava, pesquisador científico do Instituto Agronômico de Campinas (IAC).  

No entanto, Gava evidencia “a importância e a necessidade de uma forte política nacional de pesquisa e produção de fertilizantes.” 

Essa iniciativa, emenda, é “para reduzirmos a dependência aumentando a sustentabilidade do agronegócio brasileiro.”  

Energia Que Fala Com Você apresenta a seguir a íntegra do texto de René Sordi sobre a ‘carta na manga’ da cana para enfrentar o potássio importado.  

A hora e a vez da vinhaça localizada

A recente crise de aumento de preço e escassez de fertilizantes, notadamente o potássio, deve afetar a nossa agricultura, inclusive o setor da cana. Porém temos uma “carta na manga” que é a vinhaça. E a vinhaça com aplicação localizada com pingentes tem se mostrado cada vez mais uma opção para aumento do raio médio e da área aplicada, e consequentemente colaborado para reduzir a dependência do KCl importado. 

Além disso tem colaborado, através dessa maior dispersão, para se resolver o problema de saturação de K de muitas áreas no entorno das usinas, que outrora recebiam pesadas doses desse insumo, pois a dinâmica e equilíbrio desse nutriente nos nossos solos é muito rápida. 

Com teores médios em torno de 3 a 4 kg de K2O/ m3 de vinhaça produzida, aplicações localizadas de 30 a 40 m3/ha suprem a necessidade desse nutriente na maior parte dos ambientes de produção, mas, sobretudo, permite o seu enriquecimento com a mistura de outros nutrientes e até mesmo de outros insumos como inseticidas, agentes biológicos e promotores de crescimento.  

Estamos finalmente falando da vinhaça como fertilizante líquido, numa qualidade de aplicação, distribuição e operação muito superior à anterior. 

De quebra, em algumas regiões, a aplicação localizada colabora para a diminuição do problema da mosca dos estábulos. E até mesmo do odor… 

Alguns pontos de atenção devem ser considerados. 

Em algumas usinas, principalmente aquelas destilarias autônomas que ainda só produzem etanol, os teores de K na vinhaça podem ser bem menores, sugerindo uma complementação ou aumento de dose ou número de aplicação.  

Como é mais uma operação de tráfego nos canaviais, deve-se primar pelo uso de GPS para evitar o pisoteio e pneus de alta flutuação nos tratores e tanques aplicadores, para diminuir a compactação do solo.  

A associação com o conceito de “canteirão”, onde a rota de tráfego é sempre a mesma, é muito bem-vinda. 

Deixo uma pergunta que sempre faço nas minhas palestras ou discussões sobre esse assunto: quem já adentrou num talhão de cana durante ou logo após a aplicação de vinhaça por aspersão? 

Aqueles que ainda não o fizeram, podem e devem fazê-lo num talhão com vinhaça localizada, e vão entender essa minha provocação final. 

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