Depois da cana, usinas se preparam para sequestrar carbono também no processo de produção
Por Delcy Mac Cruz
Pesquisadores trabalham na novidade, que transforma as unidades em ‘estações de descarbonização’
Créditos de imagem: Copersucar
Sobram exemplos para destacar o etanol como um senhor aliado da descarbonização. Veja o caso das emissões de dióxido de carbono (CO2), um dos principais geradores de gases de efeito estufa (GEEs), responsáveis pelo aquecimento global.
Em linhas gerais, o combustível feito da cana-de-açúcar libera em média 75% menos CO2 que a gasolina.
É que o volume de carbono emitido pelo etanol é menor porque o teor de CO2 existente nele também é muito menor.
Ademais, as emissões feitas por ele são compensadas pela cana que, ao se desenvolver no campo, absorve da atmosfera o mesmo CO2 emitido pelo escapamento do automóvel. Isso ocorre porque o crescimento da matéria-prima é feito pelo processo de fotossíntese, que requer o CO2 da atmosfera.
O saldo positivo pode ser constatado na cidade de São Paulo. A partir da década de 1990, por conta do programa Proconve, que estabelece, entre outras, limites de emissão de poluentes, o etanol substitui o composto de chumbo que era misturado à gasolina.
Para se ter ideia, o Estado de São Paulo registrou, em 2019, a menor emissão de dióxido de carbono por habitante em 20 anos. E isso, segundo a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente de São Paulo, está associado ao recorde de consumo de etanol.
“A qualidade do ar na Região Metropolitana, que concentra a maioria da frota estadual, é melhor do que a de metrópoles como Paris [capital da França]”, disse a presidente da Companhia Ambiental do Estado (Cetesb), Patricia Iglesias (leia aqui).
Não para por aí.
Ciclo de vida menos poluente
A ‘guerra’ pela descarbonização, deflagrada globalmente, também é combatida pelas usinas de cana credenciadas no programa de Estado RenovaBio, que incentiva o consumo de biocombustíveis e contempla a produção pelos créditos de descarbonização (CBIOs).
Esses equivalem a uma tonelada de carbono cada e são comercializados na B3, a bolsa paulista.
Para tanto, a usina credenciada emite um CBIO conforme o chamado ciclo de vida do etanol que produz.
Se esse ciclo tem muito consumo de óleo diesel por tratores e caminhões, necessários no processo produtivo, será preciso mais litros de etanol para emitir um crédito. Do contrário, se usa menos combustível fóssil, a usina emite com produção menor.
Hoje, em média, a usina emite um CBIO a cada 800 litros produzidos.
“Acho muito complicado ainda se precisar de 800 a 1 mil litros de etanol para um CBIO”, disse Antonio de Padua Rodrigues, diretor técnico da UNICA, entidade representativa do setor.
“Temos potencial para alcançar um crédito com 600 litros.”
Capturar CO2 da combustão
Pois a busca para alcançar esse potencial mencionado pelo executivo da UNICA pode estar com os dias contados.
É que pesquisadores estudam equipamento capaz de capturar CO2 de gases oriundos da combustão de biomassa da cana no processo produtivo do etanol.
Como assim?
Pode parecer complicado, mas a empreitada, a cargo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Ceará (UFC), é baseada em processos já empregados em outros segmentos industriais.
Sendo assim, a pesquisa já nasceu focada em tecnologia existente. E, desta forma, tem sólidas chances de chegar ao mercado nos próximos anos.
Saiba, a seguir, destaques do trabalho a partir de informações do Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI, na sigla em inglês), centro que ancora a pesquisa e é financiado pela Fapesp e pela Shell.
Adsorção: o grupo de pesquisadores avalia se é possível capturar CO2 de gases provenientes da combustão da biomassa da cana por meio de sistemas de adsorção.
Quem é usuário: esse processo é utilizado para outras finalidades da indústria nacional e internacional, como, por exemplo, limpar uma corrente de ar contaminada por amônia ou purificar gás natural.
Novidade - Porém, é um processo que ainda não foi aplicado para capturar CO2 a partir da biomassa que gera o etanol e essa é uma das novidades da pesquisa”.
Absorção - Hoje, o processo de separação mais empregado pela indústria é o de absorção. Aqui, o gás passa por um líquido, que então captura o CO2. Mas esse processo consome bastante energia.
Mais econômico - Já o processo de adsorção, empregado na pesquisa, é mais econômico em termos energéticos. Isso porque substitui o líquido por um material sólido altamente poroso.
Poros - Para se ter ideia, um grama dessa partícula pode abrigar cerca de mil metros quadrados de poros. E, graças a essa característica, o material tem grande capacidade de atrair o gás carbônico, o que torna o processo de captura de CO2 mais rápido e eficaz.
Experimentos - O projeto é conduzido em duas frentes. Em uma delas, pesquisadores de Engenharia Química da UFC estudam o processo de adsorção de forma experimental em pequena escala. Eles farão experimentos para compreender como os gases oriundos da biomassa se comportam durante a adsorção. Motivo: se quer entender de que forma fazer a separação eficiente de CO2 na presença de impurezas típicas deste tipo de gás.
Grande escala - Em outra frente, pesquisadores da USP vão estudar a viabilidade de se aplicar a proposta em grande escala, caso de uma usina de cana.
Simulação - Como não existe ainda um equipamento industrial construído para esse fim, a equipe irá simular todo o processo em computador. É preciso pensar nos detalhes construtivos do equipamento para evitar problemas como o da má distribuição de gás e de material sólido.
Risco de prejuízo - É que caso os dois elementos (gás e material sólido) não se distribuam de maneira uniforme no interior do equipamento, não conseguem interagir de forma ideal, o que, consequentemente, prejudica o processo de separação.
Otimização topológica - Para otimizar o desempenho dos equipamentos, o projeto vai lançar mão da otimização topológica. Trata-se de técnica criada na década de 1980, nos EUA: uma ferramenta computacional é utilizada em projetos de estruturas de alto desempenho, que buscam encontrar a distribuição mais adequada de materiais dentro de um espaço específico.
Leitos fluidizados - No RCGI, a otimização topológica é usada na área de fluídos e química. No caso do projeto da biomassa, será adotado o modelo em sistemas de leitos fluidizados que, em resumo, são reações químicas extremamente complexas.
Inteligência artificial - Diante a complexidade, já que o cérebro humano não consegue gerenciar sozinho, sem a ajuda de máquinas, toda a expertise necessária será empregada, já que a finalidade é melhorar a adsorção de CO2.
Alta sensibilidade - É de se reconhecer que a operação demanda alta sensibilidade: se se mexer em um pequeno detalhe relativo à temperatura, por exemplo, pode-se melhorar ou piorar o processo.
Interligação - Depois, os pesquisadores irão interligar os estudos experimentais e de modelagem para desenvolver métodos de projeto para a indústria.
Construção de equipamentos - Os conhecimentos gerados neste projeto irão permitir, por exemplo, que se ofereça subsídios para empresas interessadas em construir equipamentos capazes de capturar CO2 de gases provenientes da combustão de biomassa cana.
Etanol verde - Assim, no futuro próximo esses equipamentos poderão ser instalados em indústrias do setor sucroenergético e contribuir para a produção do etanol verde, sem emissão de CO2.
Na torcida
Por fim, o setor sucroenergético vive a expectativa pelo êxito do trabalho desses pesquisadores.
Afinal, as usinas querem o quanto antes se tornarem estações 100% descarbonizantes - o que ajuda o Brasil a se manter na linha de frente global em redução de gases de efeito estufa.
Vale lembrar que a pesquisa da adsorção é conduzida pelos seguintes especialistas: Marcelo Martins Seckler, engenheiro químico, professor da Poli-USP e coordenador do projeto; Diana Cristina Silva de Azevêdo, professora e pesquisadora do departamento de Engenharia Química da UFC; Emílio Carlos Nelli Silva, engenheiro mecatrônico, professor da Poli-USP e vice-coordenador do projeto;